Deliciei-me a ouvir as suas histórias do exílio e da resistência à Ditadura. Uma tarde ele olhou-me e disse-me "Quando a vi entrar fez-me lembrar uma amiga russa do tempo do exílio. Nunca mais soube dela..." E ali ficou, de olhar perdido nas memórias passadas. Sorri-lhe, segurei-lhe a mão morena de compridos dedos e olhei-o com ternura. Também eu tinha a impressão de já o conhecer. As afinidades tinham feito o seu trabalho.
Durante a minha estadia em S.Paulo ele insistiu para que me instalasse na sua fazenda a poucos quilómetros da cidade. Como ainda me restavam alguns dias antes de regressar a Lisboa, aceitei a oferta. Acompanhou-me e ao fim do dia regressou à cidade. Mas antes mostrou-me tudo, as árvores (cada uma com a sua história), o riacho, os cavalos, a família de caseiros que tomava conta da fazenda e um segredo guardado dentro de um armário - armas, muitas e prontas a serem usadas -. Interroguei-o com o olhar e serenamente respondeu-me: "Minha querida, a democracia e a liberdade nunca estão ganhas em definitivo".
A seguir, levou-me pela encosta que descia até ao riacho e fez-me parar a meio do caminho à porta de uma capelinha, pintada de branco e enfeitada de flores. No interior, uma pequena prateleira servia de altar e em cima havia uma pequena caixa de madeira. Perguntei-lhe o que era e ele respondeu-me desassombrado: "O meu filho, o meu único e amado filho. Faleceu com 20 anos num acidente de automóvel, movi uma guerra à sua mãe, que queria enterrá-lo, e consegui trazer as suas cinzas para aqui, onde estará sempre comigo".
Saí comovida e, em silêncio sem que ele visse, enxuguei algumas lágrimas que teimavam em cair. Seguiu-me e disse-me: "Agora venha ver uma árvore que não existe em Portugal". Fomos até uma árvore frondosa, cujos frutos parecidos com cerejas cresciam agarrados ao tronco, como pequenas pérolas negras. "Chama-se jabuticabeira e a jabuticaba tem um papel importante na fecundidade das mulheres. Prove os frutos aqui porque depois de apanhados duram pouco e não poderá levá-los para Portugal..."
Depois do almoço anunciou que precisava de fazer uma sesta antes de regressar à cidade. Escolheu uma das redes e ali ficou até se recompor do cansaço. Cirandei pela casa e encontrei velhos livros. Uns mais lidos que outros. Numa das prateleiras encontrei "As Farpas". Reli-as. Quando acordou mostrei-lhe o livro. Já não se lembrava e achava mesmo que alguém o deveria ter deixado esquecido. Como se tinha esquecido dos óculos li-lhe algumas passagens e vi-o sorrir, de novo com o olhar suspenso no passado.
O fim da tarde tinha chegado depressa e ele tinha de regressar antes que fizesse escuro, mas ainda quis mostrar-me duas árvores que tinha plantado havia poucos dias e disse-me: "Esta aqui vai ter o seu nome e quando você partir, vou vê-la crescer e lembrar-me de si".
Alguns dias depois regressei a Portugal. Ainda nos falámos ao telefone e escrevi-lhe sem nunca ter tido resposta. O silêncio instalou-se como um muro e nunca mais soube deles. Foi há sete anos.
É estranho como as pessoas se perdem de nós, ou nós delas...