Tinha quase 70 anos quando o conheci, a idade dos meus pais. Voz pausada de veludo, cabelos grisalhos e ondulados que lhe batiam nos ombros, pele morena, tisnada pelo sol do Brasil e por algumas gotas de sangue escravo. Mas ele tinha rejeitado tal sorte e ainda jovem, boémio e comprometido politicamente, cedo provou as agruras dos que contestaram o regime militar nos anos 60'. Militante do PC Brasileiro procurou exílio na então URSS. Por lá ficou até poder regressar ao seu amado Brasil. Casou, teve filhos e fez-se advogado. Descasou quando conheceu Maria Aparecida. Mais jovem do que ele, activista política também, presa e torturada nas cadeias brasileiras, tinha conseguido manter o sorriso e a tranquilidade. Quando os conheci, 'Cida' trabalhava na fixação do texto de uma nova Constituição, tinha lido a portuguesa e achava-a escrita num registo poético.
Deliciei-me a ouvir as suas histórias do exílio e da resistência à Ditadura. Uma tarde ele olhou-me e disse-me "Quando a vi entrar fez-me lembrar uma amiga russa do tempo do exílio. Nunca mais soube dela..." E ali ficou, de olhar perdido nas memórias passadas. Sorri-lhe, segurei-lhe a mão morena de compridos dedos e olhei-o com ternura. Também eu tinha a impressão de já o conhecer. As afinidades tinham feito o seu trabalho.
Durante a minha estadia em S.Paulo ele insistiu para que me instalasse na sua fazenda a poucos quilómetros da cidade. Como ainda me restavam alguns dias antes de regressar a Lisboa, aceitei a oferta. Acompanhou-me e ao fim do dia regressou à cidade. Mas antes mostrou-me tudo, as árvores (cada uma com a sua história), o riacho, os cavalos, a família de caseiros que tomava conta da fazenda e um segredo guardado dentro de um armário - armas, muitas e prontas a serem usadas -. Interroguei-o com o olhar e serenamente respondeu-me: "Minha querida, a democracia e a liberdade nunca estão ganhas em definitivo".
A seguir, levou-me pela encosta que descia até ao riacho e fez-me parar a meio do caminho à porta de uma capelinha, pintada de branco e enfeitada de flores. No interior, uma pequena prateleira servia de altar e em cima havia uma pequena caixa de madeira. Perguntei-lhe o que era e ele respondeu-me desassombrado: "O meu filho, o meu único e amado filho. Faleceu com 20 anos num acidente de automóvel, movi uma guerra à sua mãe, que queria enterrá-lo, e consegui trazer as suas cinzas para aqui, onde estará sempre comigo".
Saí comovida e, em silêncio sem que ele visse, enxuguei algumas lágrimas que teimavam em cair. Seguiu-me e disse-me: "Agora venha ver uma árvore que não existe em Portugal". Fomos até uma árvore frondosa, cujos frutos parecidos com cerejas cresciam agarrados ao tronco, como pequenas pérolas negras. "Chama-se jabuticabeira e a jabuticaba tem um papel importante na fecundidade das mulheres. Prove os frutos aqui porque depois de apanhados duram pouco e não poderá levá-los para Portugal..."
Depois do almoço anunciou que precisava de fazer uma sesta antes de regressar à cidade. Escolheu uma das redes e ali ficou até se recompor do cansaço. Cirandei pela casa e encontrei velhos livros. Uns mais lidos que outros. Numa das prateleiras encontrei "As Farpas". Reli-as. Quando acordou mostrei-lhe o livro. Já não se lembrava e achava mesmo que alguém o deveria ter deixado esquecido. Como se tinha esquecido dos óculos li-lhe algumas passagens e vi-o sorrir, de novo com o olhar suspenso no passado.
O fim da tarde tinha chegado depressa e ele tinha de regressar antes que fizesse escuro, mas ainda quis mostrar-me duas árvores que tinha plantado havia poucos dias e disse-me: "Esta aqui vai ter o seu nome e quando você partir, vou vê-la crescer e lembrar-me de si".
Alguns dias depois regressei a Portugal. Ainda nos falámos ao telefone e escrevi-lhe sem nunca ter tido resposta. O silêncio instalou-se como um muro e nunca mais soube deles. Foi há sete anos.
É estranho como as pessoas se perdem de nós, ou nós delas...
Deliciei-me a ouvir as suas histórias do exílio e da resistência à Ditadura. Uma tarde ele olhou-me e disse-me "Quando a vi entrar fez-me lembrar uma amiga russa do tempo do exílio. Nunca mais soube dela..." E ali ficou, de olhar perdido nas memórias passadas. Sorri-lhe, segurei-lhe a mão morena de compridos dedos e olhei-o com ternura. Também eu tinha a impressão de já o conhecer. As afinidades tinham feito o seu trabalho.
Durante a minha estadia em S.Paulo ele insistiu para que me instalasse na sua fazenda a poucos quilómetros da cidade. Como ainda me restavam alguns dias antes de regressar a Lisboa, aceitei a oferta. Acompanhou-me e ao fim do dia regressou à cidade. Mas antes mostrou-me tudo, as árvores (cada uma com a sua história), o riacho, os cavalos, a família de caseiros que tomava conta da fazenda e um segredo guardado dentro de um armário - armas, muitas e prontas a serem usadas -. Interroguei-o com o olhar e serenamente respondeu-me: "Minha querida, a democracia e a liberdade nunca estão ganhas em definitivo".
A seguir, levou-me pela encosta que descia até ao riacho e fez-me parar a meio do caminho à porta de uma capelinha, pintada de branco e enfeitada de flores. No interior, uma pequena prateleira servia de altar e em cima havia uma pequena caixa de madeira. Perguntei-lhe o que era e ele respondeu-me desassombrado: "O meu filho, o meu único e amado filho. Faleceu com 20 anos num acidente de automóvel, movi uma guerra à sua mãe, que queria enterrá-lo, e consegui trazer as suas cinzas para aqui, onde estará sempre comigo".
Saí comovida e, em silêncio sem que ele visse, enxuguei algumas lágrimas que teimavam em cair. Seguiu-me e disse-me: "Agora venha ver uma árvore que não existe em Portugal". Fomos até uma árvore frondosa, cujos frutos parecidos com cerejas cresciam agarrados ao tronco, como pequenas pérolas negras. "Chama-se jabuticabeira e a jabuticaba tem um papel importante na fecundidade das mulheres. Prove os frutos aqui porque depois de apanhados duram pouco e não poderá levá-los para Portugal..."
Depois do almoço anunciou que precisava de fazer uma sesta antes de regressar à cidade. Escolheu uma das redes e ali ficou até se recompor do cansaço. Cirandei pela casa e encontrei velhos livros. Uns mais lidos que outros. Numa das prateleiras encontrei "As Farpas". Reli-as. Quando acordou mostrei-lhe o livro. Já não se lembrava e achava mesmo que alguém o deveria ter deixado esquecido. Como se tinha esquecido dos óculos li-lhe algumas passagens e vi-o sorrir, de novo com o olhar suspenso no passado.
O fim da tarde tinha chegado depressa e ele tinha de regressar antes que fizesse escuro, mas ainda quis mostrar-me duas árvores que tinha plantado havia poucos dias e disse-me: "Esta aqui vai ter o seu nome e quando você partir, vou vê-la crescer e lembrar-me de si".
Alguns dias depois regressei a Portugal. Ainda nos falámos ao telefone e escrevi-lhe sem nunca ter tido resposta. O silêncio instalou-se como um muro e nunca mais soube deles. Foi há sete anos.
É estranho como as pessoas se perdem de nós, ou nós delas...
2 comentários:
Tinha lido, em letras pequeninas, algures sob as estrelas do Alentejo... Agora reli e continuei a gostar da tua história... Vocês deviam escrever num blogue que fosse lido por alguém... pelo menos de vez em quando. Se serve de consolo posso pelo menos prometer que, se algum dia me escreveres, responderei!
Beijinho e boa semana!
Mas tu és alguém...
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