domingo, 1 de julho de 2007

Três ou quatro coisas de um domingo em casa



1. Jardins Gulbenkian
- Que bela surpresa nos estava reservada nos Jardins da Fundação. Almofadas coloridas espalhadas pela relva sob as árvores e toldos de tecidos alegres ao longo de todos os passeios pedestres, convidam a ficar e a preguiçar enquanto o calor não aperta. Ora aí está uma bela forma de abrir as portas dos museus, para além das exposições, às vezes sisudas e pouco convidativas.

2. Água - Da minha janela vejo os serviços técnicos da Epal. No parque de estacionamento as carrinhas dos piquetes de urgência estão paradas à espera...de uma urgência. Alguns funcionários chegam cedo. A cozinheira e os fornecedores também, é lá que funciona a cantina. Os funcionários chegam em carro próprio, fazem turnos e à noite, sem urgências, o tédio instala-se e deve ser para ajudar a "matar" o tempo que se ocupam a lavar os carros. Demoradamente. A água corre desperdiçada. Inquieto-me com esta inconsciência sobre a necessidade de poupar o precioso líquido. Penso nesta sociedade obcecada pela limpeza que mata pouco a pouco as suas fontes de vida. Automóvel, prolongamento do Eu, dizem os psis, sinal exterior de riqueza e estatuto social, dizem os analistas sociais. Assim sendo é preciso que o resto do Eu ande bem lavadinho, brilhante, nem que para isso estes Eus se alheiem e vão alienando a água que corre por conta da casa. Do Mundo, afinal.

3. Solidão - Da minha outra janela vejo o terreno que rodeava uma casa centenária agora reduzida à fachada de um prédio modernaço em que cada apartamento custará um rio bem cheio de dinheiro. Foi ao fundo do terreno que instalaram a casa do guarda que toma conta das obras. À noite costuma sentar-se a uma mesa colocada sob um toldo de sarapilheira. Lê o jornal à luz de um néon branco e frio. Às vezes os gatos vadios vêm visitá-lo. Aos domingos vejo-o penteado, barbeado e vestido de lavado, sem pó de cimento sobre os cabelos. Tem um olhar terno e humilde e, às vezes quando regressa com sacos de compras do supermercado, cruza-se comigo na rua e diz educadamente "Bom dia, senhora". Está por ali durante todo o dia e à noite volta a sentar-se à mesa com o seu jornal enquanto um rádio roufenho solta sons que não consigo decifrar. Senta-se à espera que chegue segunda-feira e, com ela, a agitação do prédio em construção. É brasileiro e vive só, ali, ao fundo do terreno que rodeava uma casa centenária. Há quanto tempo viverá só?

4. Mel - Sim, é o prato favorito de Winnie the Pooh (personagem que entrou na minha vida há dez anos atrás, de quem me esqueci e que voltou a entrar há três; vicissitudes do ofício de mãe). Sim, é o néctar que alimentou, com nozes e queijo de cabra, heróis sitiados por terras de Viseu, há muitos, muitos anos atrás. Sim, é isso tudo mas não é esse que procuro sem sucesso de há uns tempos para cá e que foi sugerido por um amigo virtual que tinha um café na Ponte e que na sua nova identidade se revela "vendedor" de palavras, de imagens, de sonhos, de viagens...

Retomando, o Mel que procuro é um livro de Tonino Guerra (não, apesar de o nome soar luso, não é português), um senhor italiano de 87 anos "argumentista cinematográfico, tendo colaborado sobretudo com Felini, Antonioni, os irmãos Taviani, Tarkovski, Angelopoulus, etc.(...) e de quem Italo Calvino disse "para Tonino Guerra tudo se transforma em conto e em poesia: de viva voz ou escrito ou nas sequências do cinema, em prosa ou em verso, em italiano ou em dialecto romanholo. Há sempre um conto em cada uma das suas poesias; há sempre uma poesia em cada um dos seus constos. E poesia quer dizer uma experiência precisa e concreta e inesperada, contendo dentro de si um sentimento e com o tom de uma voz que nos fala" (in O livro das igrejas abandonadas, Assírio e Alvim, 1997, pp.15-16).

Cheguei às Igrejas Abandonadas quando andava à procura do Mel e numa das livrarias em que entrei, depois de ter vasculhado as prateleiras de prosa e poesia e de não o ter encontrado, a funcionária, iluminada e contente com aquela espécie de revelação disse-me: "Espere, ainda não vimos na secção de Saúde...". Decidi encomendá-lo e esperar que me contactem, entretanto vou conhecendo as Igrejas...

Bom, feita a apresentação deixo aqui um bocadinho para vos despertar a vontade de o "conhecer": "(...) A igreja está cheia de rachas e a porta está fechada a cadeado. Ao domingo os velhos põem-se de joelhos em volta das paredes e gritam os pecados para dentro das fendas de modo que vão parar ao altar, onde há uma colher, um candelabro derrubado e um ovo de galinha. Um rapazinho que vive com o avô no meio daqueles velhos todos, ao domingo também se põe de joelhos diante de uma racha, mas começa logo a chorar porque não descobre pecados. Felizmente o avô está ali ao pé e baixinho vai-lhe passando alguns emprestados."(pp.24-25)

1 comentário:

CCF disse...

Gostei deste(teu) Domingo! Quase todos os poetas escreveram sobre um dia de Domingo.
~CC~