segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Guarda-rios e estuários (XV)



Vivia em Almar uma mulher de olhos cor de violeta. Diziam que tinha nascido de uma ligação entre um homem Almar e a sereia que vinha deitar-se na língua de areia do estuário. Por ser essa a sua origem, a cor dos seus olhos não era de pessoa, nem de bicho.


Era uma mulher linda e muito calada, diferente de todas as mulheres Almar que de tudo sabiam fazer e cuidar. Cresceu passeando o seu silêncio entre as tendas, os tapetes de cores, e os cantares de festa, num mistério crescente.

Quando se tornou rapariga deixou a tenda dos pais adoptivos onde vivia e foi para a tenda das mulheres. Era essa a prática comum por volta dos 18 anos. Na tenda das mulheres viviam solteiras, separadas, viúvas, viviam todas as mulheres que queriam estar em conjunto, fora da casa dos seus pais ou que por razões diversas não queriam ou não podiam ter em permanência uma tenda de matrimónio. As tendas de matrimónio eram tendas de amor, quase sempre de um amor duradouro que unia duas pessoas num abraço eterno, mas houve também tendas de amor fugaz, luzes que se acenderam como se fossem um pirilampo. Era aceite tudo o que era ou se tornava da claridade da água das fontes.

A tenda das mulheres era um lugar de aprendizagem quase completa do que significa a democracia na vida de todos os dias. Gostava de lá ir em pequena para beber chá e provar as muitas variedades de doces que sabiam fazer, sonhava um dia lá morar (mas Almar morreu antes de eu me tornar mulher).

Quando a mulher dos olhos cor de violeta foi morar para a tenda, quase aprendeu a sorrir. E já ia dizendo algumas palavras simples, como se só tivesse ontem deixado a infância e aprendido a falar. Por vezes, nos dias de festa, ela parecia quase feliz. Nesses dias eu via, ainda com os meus olhos de menina, que os homens Almar olhavam muito para ela.

Não demorou muito até se ouvir dizer que se ia casar e que já tinham escolhido a nascente do rio onde ia acontecer. Não sei porquê, ainda tão pequena que eu era, e fiquei triste com aquela notícia. Provavelmente deixaria de a ver nos seus gestos silenciosos a mexer com a colher de pau o doce de amoras silvestres, se calhar era apenas isso que me deixava triste. Era apenas isso, muito provavelmente.

(continua...)

~CC~

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