terça-feira, 4 de setembro de 2007

Guarda-rios e estuários (XIII)

Os estranhos ao nosso povo eram simplesmente os outros e os outros eram sem dúvida mais, muito mais que nós. Não havia, contudo, hostilidade para com eles, eram acolhidos e celebrados sem alarido. Alguns homens e mulheres Almar tinham trazido outros para dentro do nosso povo por laços de amor. Quando era muito pequena não percebia bem esta divisão entre nós e os outros. Descobri-a, talvez, com o primeiro amor.

Os meninos Almar eram feitos de bravura e generosidade, entravam dentro do rio para tentar apanhar os peixes com as suas próprias mãos e depois repartiam-nos entre eles, em festa. Aqueles eram os meninos que eu conhecia e por isso não compreendia aquele que se tinha cruzado no meu caminho, parecia filho do pó do vento, de tão louro e de tão calado que era.

O rapazinho seguia-me para todo o lado: na vila, pelos caminhos, e vinha mesmo até ao nosso lugar junto ao rio. Se eu parava e olhava para ele, ele parava também. Nenhum de nós dizia nada, ele seguia-me e era tudo o que acontecia entre nós.

Mas um dia ele ficou parado muito perto da minha tenda e a minha mãe descobriu-o enquanto estendia os tapetes a pingar tinta nas cordas presas entre as árvores. Perguntou se era colega da escola e disse que não, que não sabia quem era. Perguntou sobre as nossas conversas e brincadeiras e eu acenei a cabeça dizendo que nada, não havia nada. Ofereceu-lhe sumo de tangerina e bolo de milho e ele comeu sem dizer nada, os olhos fixos em mim. Quando ele se foi, ela disse-me: os teus amigos outros serão sempre bem acolhidos, mas feliz filha... isso só serás com um rapaz Almar. E nada proibiu, mas depois disso nunca mais parei no caminho a olhar para o rapazinho. E ele desapareceu.

Não sabia a minha mãe que os rapazes Almar iriam pouco a pouco extinguir-se como plantas sem terra e que a frase dela ficaria dentro de mim muito tempo como se fosse uma maldição. Procurei muito tempo esse rapaz Almar por aldeias, vilas, países e continentes. Se quiserem que diga como vocês diriam: procurei como uma vossa rapariga procura um princípe mais valente do que um touro ou um vosso rapaz procura uma princesa tão linda que ilumina o próprio escuro.

Agora já nada procuro, outros e nós já não existem e o amor é coisa que habita o sangue de um outro modo. Digo-te pois que se deixares o teu coração viajar liberto de maldade e de preconceito, poderás descobrir o que há para amar dentro de cada um que cruzar contigo o olhar num qualquer caminho.
~CC~

4 comentários:

Gregório Salvaterra disse...

Lindo, lindo!
Acompanhar esta história Almar é uma viagem de emoções.
Não desistas da procura. Ainda há rapazes com Almar lá dentro.
*jj*

João Torres disse...

A cada novo capítulo ficamos com vontade de saber mais pormenores sobre esse teu povo de Almar... Gosto muito destas tuas histórias!

CCF disse...

Obrigada pelo vosso incentivo! Beijinhos
~CC~

Cristina Gomes da Silva disse...

Precisas lá de incentivo...já está todo aí dentro.;)