segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Guarda-rios e estuários (XII)



A mulher mais velha que guardava as sementes do povo Almar: o tesouro do meu povo. Nas palavras que tinha dito em voz baixa ela anunciava a ruptura que chegaria mais tarde, no final da minha adolescência. No modo como ela tinha dito que cada um dos meus sonhos colado a cada uma das sementes Almar era apenas o meu sonho, tinha o valor infímo de uma coisa, apenas uma entre as infinitas possíveis.


Soube nesse dia que não era eu a arquitecta do destino Almar porque esse estaria nas mãos de quem soubesse ler e não de quem soubesse construir, não de quem, como eu, desenhava na areia com tanta inquietude. E eu não lia bem nesse tempo, tinha essa dolorosa consciência de que me era mais importante escutar-me do que escutar os outros, mas não a generosidade suficiente para mudar. Mais, nesse tempo soube que a ruptura entre mim e o meu povo residia nesse modo de olhar o colectivo, na recusa em deixar moldar a forma do meu corpo pela do sangue quente que lhe tinha dado origem. No modo como ela, a mulher velha, diminuiu os meus sonhos e me reduziu a um ponto no universo dos pontos, começou aí a minha viagem. Mas não quereria, nunca quis que as sementes Almar se perdessem e muito menos que o meu povo se desligasse e se tornasse mais fugitivo e mais transparente que o próprio vento.


Apenas me revoltava porque tinha sonhos para as sementes enquanto muitas outras ficavam caladas quando se lhes perguntava ou diziam : não sei. Algumas das minhas companheiras usavam uma variante mais sábia: ainda não sei. E quando eu gritava: eu tenho sonhos, cinco ideias para as sementes, era frequente que o riso nascesse entre as mulheres mais jovens. Mais realistas que eu, afirmavam que sonhar as sementes era apenas um modo da mulher velha nos por à prova, porque o que era cada semente e o que dela nasceria, isso já se sabia há muito.


Onde estão as sementes, as sementes do meu povo Almar, é essa agora a minha angústia. E maior ainda é pensar que sei onde estão mas que me posso ter esquecido, que apaguei isso da minha memória como certas zonas de maior violência ou tristeza. Pior ainda é pensar que as tomei com o resto de algum rio, com a última água de alguma das nossas fontes, que as engoli todas numa noite escura e que agora vivem dentro de mim sem que eu saiba verdadeiramente o que são.
~CC~


3 comentários:

João Torres disse...

É linda esta tua história de gente de Almar.

Cristina Gomes da Silva disse...

Regressar ao princípio da inquietação talvez seja um caminho. É bonito, este povo.

CCF disse...

E tera fim? Fim feliz ou triste? Ou haverá cambiantes entre um e outro? Escrevo-a para todos, mas a pensar em terminá-la para a oferecer inteira à minha filha.
~CC~