sexta-feira, 20 de julho de 2007

Guarda-rios e estuários (XI)




Eu, como todas as crianças Almar queria guardar um dia as sementes. Perguntei à mulher velha sobre os meus sonhos para as cinco sementes, queria saber se ela os tinha aprovado, se eles eram bons sonhos, se eles eram uma boa pele para o nosso povo. Ele respondeu que sim, que eu tinha chegado perto do que podia ser o tudo de que precisamos para viver, mas que não sabia se seria eu a guardá-las um dia. Perguntei porquê, triste por ela não ver que era eu, que tinha que ser eu. Ela explicou então que quem guardava as sementes era quem melhor traduzia sonhos e não quem os tinha mais ou melhores. A mulher Almar que guarda as sementes é uma tradutora de sonhos. Eu não sabia o que queria dizer a palavra tradução, não entendia inteiramente o sentido dela. Traduzir, como as línguas, descobrir sentidos. Queria que me explicasse mais, mas ela recusou. Não me podia explicar tudo porque se não nada sobraria para eu aprender sozinha. E pediu para eu ir, estava cansada.

Esta conversa ocorreu cerca de três anos antes dos Homens Almar terem começado a adoecer por terem perdido o seu emprego de guarda rios, três anos antes do início da grande dispersão, de nos perdermos uns dos outros, ainda que a resistência à dissolução da nossa identidade tenha sido grande e durado pelo menos dois Outonos.

~CC~

2 comentários:

Cristina Gomes da Silva disse...

Não sei se traduzir fica bem aqui. É que traduzir é trair...

Sim, gosto!

CCF disse...

Pensei em interpretar, nessa capacidade de interpretar os sonhos dos outros, de os ler :) Mas em qualquer interpretação fica sempre o olhar de quem lê, por mais que se esforce em ver os outros por dentro. O que eu queria dizer é que há só quem olhe para dentro de si e claro a mulher velha tenta dizer-lhe que isso é importante mas não basta. São só histórias :)...
~CC~