terça-feira, 19 de junho de 2007

Raízes com asas

A Tia velha tinha-lhe dito um dia que ela era a que mais se parecia com a trisavó. Não havendo fotografias, não podia confrontar parecenças nem contestar impressões. Perguntou porquê mas a Tia foi pouco clara. Insistiu tempos depois e obteve como resposta: "Não sabemos se é verdade, mas, seja como for, é segredo e pouca gente sabe da história, por isso, não a repitas, seria uma vergonha - a tua trisavó era uma cigana que abandonou o grupo para casar com o trisavô, e tu és a mais parecida com ela."
A partir desse dia desejou encontrar uma verdade documentada e racional, mas intimamente sabia que não precisava de documentos e sabia que era dessa raíz que lhe vinha a "leviandade" que a mãe sempre lhe tinha criticado, que era dessa raíz que cresciam os ramos da árvore apontados ao céu, seu único limite.
Viajava pouco, mas era raro que não se sentisse "em casa" fosse onde fosse. Como se o estranho fosse, para ela, familiar. Não sabia de onde lhe vinha este à-vontade. Era tímida. Confiava-se pouco, resguardava-se muito. Tinha poucos amigos, dois ou três pilares mas sem grande intensidade. Era demasiado orgulhosa para admitir que precisava de alguém incondicionalmente.
Tinha um corpo sedentário mas uma alma nómada. Nómada. Era bonita a palavra, aveludada e cheia. Era ao impulso do coração que incorporava, fascinada, as visões dos homens azuis do deserto, das caravanas dos romanish trazidas pelos documentários ou pelos filmes de Kusturica, dos cavalos da Camargue. Era sempre com um arrepio profundo que ouvia os acordes de Paco de Lucia. E a Carmen... A vastidão das estepes e as planícies alentejanas eram das imagens que mais paz lhe traziam. Era pelo coração que entravam os sons das músicas e o moreno tisnado dos vendedores ambulantes vestidos de negro eterno. Como se houvesse uma ligação directa entre o olhar e aquele músculo irrequieto, substituindo-o. Às vezes via primeiro com o coração.
Gostava de se apaixonar e tinha citado vezes de mais para si própria a frase encontrada nas Novas Cartas Portuguesas "este meu muito maior prazer em sentir-me apaixonada do que em amar-te". Divisa de vida? Talvez. E, talvez por isso, tinha ouvido algumas vezes que não sabia amar. Surpreendida no início, tinha trilhado ao longo dos anos um caminho de lava, incandescente e solitário. Comprazia-se naquela dança narcísica que a paixão também sabe ser. Sabia, no entanto, de um amor incondicional, sem preço, despojado e sagrado: o que alimentava em relação aos três filhos, nascidos de três paixões. Nenhum outro a obrigaria a qualquer sacrifício. Nenhum outro a dobraria à vontade de quem quer que fosse. Mas submetia-se voluntária àquela missão apaixonada: amar os filhos.
Dizia muitas vezes que desejava ter muitas vidas para poder regressar um dia e outro e fazer as viagens todas, amar sem reservas e voltar a morrer, finalmente em paz com o seu destino.

4 comentários:

João Torres disse...

Que bom poder passar aqui e ler os vossos textos.

Gostava de conhecer um dia a tua personagem.

Sentimos por aqui a tua falta.
Bem-vinda!

Cristina Gomes da Silva disse...

Mas já a conheces. Está aqui descrita. É verdade que não disse que número calça...;)

CCF disse...

Bom, talvez seja um modo estranho de fazer contas...:)
Mas esta rapariga parece-se vagamente com alguém que conheço. Belo retrato!
~CC~

Cristina Gomes da Silva disse...

Oh ~CC~, é verdade, de tão ficcional até parece real...