quarta-feira, 2 de maio de 2007

Uma vida (quase) inteira na "escuridão" das letras.

(...)
Que adianta saber as marés
Tratar por tu os oficios
Os frutos e as sementeiras
Entender o suão e os animais
Conhecer-lhe o corpo pelos sinais
E do resto entender mal
Falar o dialecto da terra
Soletrar assinar em cruz
Nao ver os vultos furtivos
Que nos tramam por trás da luz
Cantado por Rui Veloso

Chegavam aerogramas do outro lado do mar e enquanto esperava que alguém por lá passasse para os ler, ia engolindo angústias mastigadas com o pão escuro e o café de borra. Depois, quando ouvia "nós por cá todos bem" descansava e até cosia as baínhas com mais precisão. Morreu sem saber decifrar uma única letra.

Diziam-lhe que agora tinha direito a 5 contos por mês. Sabia que sim porque aos números sempre era mais fácil conhecê-los. As letras é que eram um sarilho. Mudavam de som consoante as palavras e ele que se chamava Zé, não percebia porque é que esse mesmo nome se escrevia com quatro letras. Juntava o que sobrava dos biscates numa caixa, não podia abrir conta num banco, nem passar cheques, nem assinar, nem nada. Um dia ouviu dizer que a Câmara ia ensinar as pessoas a ler e a escrever. Como? Umas raparigas que "tinham estudos", viriam à noite depois do jantar, lá ao Clube. Era fácil só precisava de lá ir, dar o nome e não faltar às aulas. Se tudo corresse bem, em Junho fazia o exame e já podia abrir uma conta, passar um cheque e escrever ao filho que continuava na Suíça e só vinha no Verão de vez em quando.

Para ela a escola poderia ter sido a libertação. Um pai autoritário e sem emoções tinha-lhe vedado qualquer saída. Os rebanhos tinham de ser apascentados e à escola só ia quando calhava. No meio das cabras treinava a leitura nos pedaços de jornal que ia encontrando no chão. Os irmãos tiveram melhor sorte. Eram rapazes. Cresceu assim, a sonhar com a escola. Num certo Abril renasceu-lhe a esperança e, anos mais tarde, tal como o Zé, também soube do que a Câmara ia fazer. Não perdeu tempo, inscreveu-se e não falhou um dia. Em Junho fez o exame da 4ª e que bem lhe soube ouvir os elogios dos professores quando respondeu a tudo na ponta da língua. "Quem era o Presidente da República? O que era o Parlamento? Em que regime vivíamos, agora que havia luz?

O Manel tinha vindo de São Tomé, precisava de fazer o exame da 4ª para poder tirar a carta de condução. É que ser motorista, era muito melhor do que carregar sacos de cimento e tijolos e...

Naquele Junho longínquo senti que aquele ano tinha mesmo valido a pena. Nunca faltavam, fizesse frio ou chuva, o gosto por aprender era profundo e a vontade de saber mais um bocadinho era forte.

E porque aqui se vem falando de trabalho, e porque acho que é sempre gratificante, aqui vos disse como ganhei os meus primeiros trocos enquanto monitora nas acções de alfabetização promovidas pela Câmara.

7 comentários:

j disse...

Ganhaste os primeiros trocos e muito mais, como fica claro neste texto saboroso.

Cristina Gomes da Silva disse...

Much more than I can say...
Obrigada, J.

CCF disse...

Compreendo muito bem os sentimentos que te traz esta memória e descreves tão bem... Ainda lembras os rostos e alguns nomes? Comigo acontece.
Fiz o mesmo, um tempo já depois dos empregos de férias. As minhas eram sobretudo velhotas, uma delas que o que mais queria era aprender a ler antes de morrer. Benfica ganhou para mim um rosto que nunca tinha tido.
~CC~

Anónimo disse...

Boas memórias, de realização profunda.

Já andava a trabalhar e ficava roída de inveja quando ouvia falar das campanhas de alfabetização.

Gostava tanto de ter feito parte.

João Torres disse...

Para que serve um blogue?
Será que se não fosse este espaço me terias contado isto? Bem sei que preferia uma esplanada e um café ou um chá... mas, não podendo ser, adorei ler o teu texto.

Também a minha mãe (uma das pessoas mais inteligentes que conheci) ficou com mais uma amiga (professora Alzira) quando já muito depois de eu ter terminado a faculdade frequentou aulas para ter o tal diploma. Ler já sabia, pois sempre leu as cartas que os filhos lhe enviavam, mas tenho a certeza que foi muito importante ter convivido com a professora Alzira e que certamente seria hoje, caso ainda estivesse entre nós, uma leitora assídua deste espaço que (quase) ninguém lê!

Obrigado pela partilha do teu texto.

Anónimo disse...

Obrigada eu, João, se não fosses tu nunca teria pensado escrever para outros lerem...:)

Cristina Gomes da Silva disse...

~CC~, claro que me lembro dos rostos, fazem parte de mim. Um dia saberás porquê.

Sabes Marta, infelizmente ainda vivemos num país em que existem analfabetos. Quem sabe, talvez possas dar um pouco do teu tempo e do que sabes a quem precisar de umas letras...:)