segunda-feira, 14 de maio de 2007

Comércio envergonhado

Foto EA

fui no fim-de-semana como tinha prometido à CC e, mais uma vez, tive uma sensação estranha que me assalta de cada vez que me aproximo destas iniciativas. Como se houvesse qualquer coisa de não assumido ou de dificilmente assumido nestas "transacções" que se querem justas, equitativas. A mim pareceu-me sobretudo envergonhado, triste mesmo.

Demos uma voltinha pelo que se podia comprar, pelo meio de umas bancas, poucas, encavalitadas, com meia dúzia de coisas (algumas lindas e que davam vontade de comprar), mas com uns vendedores tão pouco entusiasmados, que facilmente nos sentimos transportados para os cenários difíceis em que são produzidos os objectos postos à venda. Não que devamos esquecê-los, ou ignorá-los, mas a visão miserabilista que ali era dada rapidamente deixou que se instalasse um sentimento de "quase culpa" por estarmos nós, "os ricos", ali a comprar o que eles, "os pobres", tinham feito pelo mundo fora.
São certamente positivas e moralmente exigíveis, todas as iniciativas que ajudam a denunciar a exploração, a miséria, a falta de escrúpulos, as condições de vida precárias e todo o rol de desgraças que já conhecemos (China Blue é um bom exemplo), mas é preciso desfraldar outras bandeiras. A da dignidade, a destas forças positivas, a da solidariedade, a da alegria possível, etc.
No meio do programa anunciavam também "jogos do mundo" dirigidos a crianças entre os 4 e os 11 anos, entusiasmei-me e entusiasmei a minha filha de 9 anos, porque iríamos ver o que/como outras crianças do mundo ocupavam o seu tempo. Seria enriquecedor sem dúvida, sobretudo para ela que gosta sempre de "espreitar" o que é diferente. Chegámos e encontrámos uma tenda pouco iluminada, com almofadas espalhadas pelo chão e 3 crianças aborrecidas com o que se passava - uma monitora fazia jogos de mímica à falta de melhor imaginação.

E foi perante tudo o que nos era "oferecido" que se insinuou com mais agudeza esta sensação de que o comérico justo é, ainda, um comércio envergonhado, como se não se concedessem o direito de ser alegres, de fazer a festa de uma forma digna. Como se a justeza não merecesse ser celebrada. Como se se sentissem uma espécie de "vendilhões do/no templo". Podiam ao menos ter aproveitado a boa luz da estrela do jardim.
Ou então sou eu que tenho uma visão pouco (a)justa(da)...

9 comentários:

j disse...

Também passei pela Estrela. Bebi um chá, revi o China Blue e, no dia seguinte, descobri o Sisters in Law (muito bom, lembrei-me dele, hoje, a propósito da terrível notícia da lapidação de Dua Khalil Aswad, no Iraque). Não procurei os jogos mas, pelo menos das bancas, parece-me muito justa a tua crónica.

Cristina Gomes da Silva disse...

Bom dia Jota (uma nova identidade?), deve ter sido por isso que não te (re)conheci na Estrela ;). Há dias referi aqui o livro de Geraldine Brooks a propósito destas tantas partes de desejo que pesam sobre os ombros das mulheres. Aconselho uma (re)leitura. Boa semana.

CCF disse...

Estive hoje com gente de uma das organizações responsáveis e perguntei como tinha corrido.Responderam com entusiamo, dizendo que tinha corrido bem e distribuído todo o material que tinham. Não posso saber nem avaliar e é natural que a visão interna de quem vive as coisas por dentro não possa corresponder à de quem as vive de fora. De qualquer modo o que é importante dizer é que Portugal tem apenas 10 lojas de comércio justo e que isso é pouco, muito pouco. E que mesmo que eles não saibam fazer os acontecimentos à altura da festa que eles provavelmente merecem, andam por aí a falar com os jovens e a formar clubes de comércio justo nas escolas do 2º e 3º ciclo. Há agora, em algumas delas, um bar paralelo, em que o que se paga ao produtor pelo café é só o dobro do que é costume, reduzindo apenas a margem de lucro. Entendo as cigarras e fazem-nos falta, mas não desmereço as formiguinhas.
~CC~

Anónimo disse...

Não percebi as cigarras nem as formiguinhas...

CCF disse...

As formiguinhas não brilham mas fazem bem o seu trabalho :) Disfarçadas na paisagem e sem que se dê por elas multiplicam-se disfarçadamente entre migalhinhas. Há um trabalho oculto, persistente, difícil, que quanto a mim não se pode medir pelos critérios que usas na tua crónica.Imagina que a rapariga da mímica pura e simplesmente tirou uma tarde da sua vida para estar ali com os miúdos a fazer o que pode e sabe, para ela aquilo que tu vês não é o mesmo que ela sente. Embora eu possa perceber e até, como tu, gostar mais de formigas com asas ou mesmo com luz.
~CC~

j disse...

Como tantas vezes acontece, a perspectiva altera os sinais da realidade. Interessantes, esses dados que aqui deixaste, CC.

Cristina Gomes da Silva disse...

Tens razão, Jota, e tu também CC, mas eu fui lá como "consumidora solidária" e o mínimo que se pede é um pouco de eficiência no acolhimento e de entusiasmo naquilo que fazem. De outro modo parece-me que serão sempre vítimas irrecuperáveis. Apesar de não gostar muito do termo, porque cheira que tresanda a capitalismo (embora nós todos façamos parte do sistema), eles precisam de marketing... Quanto à menina mimo, até posso concordar contigo, CC, e sabes que até já tenho defendido um "Banco de tempo" como o havia concebido a Engª Mª de Lurdes Pintassilgo, mas não era isso que estava "prometido". Bjs

Cristina Gomes da Silva disse...

Ah, mas esqueci-me de te dizer, que também lá, em conversa com um vendedor, soube dessas iniciativas junto das escolas e lamentei o facto de não o fazerem para as escolas de ensino superior. Mas não é nada disso que está em causa. O que eu assinalei como menos positivo foi a forma envergonhada de se mostrarem, mais nada. Por isso, continuo a não perceber as tuas analogias com os insectos...

CCF disse...

È que as formigas são às vezes envergonhadas, não têm jeito para cantar e para dançar -ou seja, para fazer a festa de que falas e que poderia atrair/encantar mais gente. Foi essa a analogia, foi assim que pensei.
~CC~