sábado, 4 de outubro de 2008

A surpresa das esferas


A surpresa das esferas
JRM - Vá andando

Chegávamos ao porto sempre à tarde, e tu disseste tantas vezes que nunca chegaríamos a ir à ilha de que tanto te falava, que cheguei a desconfiar do teu interesse, afinal não conhecias a cidade.
No entanto, tínhamos acertado o dia, o que iríamos fazer num lugar habitado por pouca gente, o que que poderias conhecer, vibravas de curiosidade, nunca tinhas estado numa ilha ou sentido os contornos que a água no seu vaivém deixava no areal, não, não era um rendilhado espumoso e branco, pelo contrário as ondas vinham mordiam os pés fosse Outono ou ainda houvesse gente passeando ressentida de nostalgia estival.
A água era quente, quente, disse-te muitas vezes, mas tu sempre embrulhada em camisolas, puxavas ocorpo muito para frente na mesa do pequeno bar do porto, como se a curiosidade vencesse a temperatura que se fazia sentir, não tiravas os olhos das esferas enterradas no cais.
Ainda na véspera me tinhas interpelado sobre o frio que ali faria de manhã, despistando-me, respondi-te que era só vento, acrescentaste que sim, talvez fosse só vento, mas estava frio, querias andar, querias anda, insistias...
Tocaste-me nas mãos, eu vi nisso um sinal de que te querias ir embora e abraçada, sim abraçada a mim, com uma pequena brincadeira imediata a contornar as esferas, a rir muito alto, como só assim nesse jogo infantil o frio que sentias esparvoasse.
Era e não era assim. Tínhamos vindo até ali ao porto em silêncio, vi-te andar, subir, descendo, contornando, equilibrando-te nas esferas a pulo e as espaços com movimentos harmoniosos, uma alegria quase infantil , um posso-posso.
Os cães de um dos barcos do porto tinham ladrado em uníssono, viam-se algumas lanternas e candeeiros empunhados e uma voz juntava-se a outra de reprovação clamando por sossego, ridicularizando os teus saltos de dança nas esferas e a minha aflição em seguir-te sempre que te pensava ou via quase a cair. Eu ali a redobrar as minhas cautelas e sem meio de te dissuadir na muitas mais voltas que teimavas em fazer.
Isso é um regresso à infância - disse-te, regresso às minhas aulas de bailado contrapuseste, para que eu te visse mais adulta, assim dissimulavas a franca infantilidade que se espraiva no teu corpo franzino, nos teus gestos delicados, nos teus pulos harmoniosos.
Voltamos, amanhã, vamos à ilha, disse-te, e tu entusiasmada assentiste, no entanto, naquele dia atrasaste-te mais do que era habitual, vinhas vestida como se fosse Inverno com a mochila nas mãos muito cheias, o ursito a pendular, querias ir, era tarde, insistias em apanhar o barco, correr, estávamos longe, o dia não te tinha corrido de feição tinhas trabalhado muito à tarde, contrapunhas ao meu silêncio, querias ir custasse o que custasse, tínhamos de correr, querias dançar na praia, trazias tudo, tinhas vindo ali durante a manhã e ali ensaiaste todos os passos nas esferas, uma dança muito remota no teu tempo de mulher, soube-o quando passou um velho com um cão correndo-lhe na dianteira e nos deu as boas-tardes e te perguntou se ias continuar o ensaio das tuas acrobacias ali nas esferas enterradas a beira do porto.

PS. Com que cara fico eu para agradecer toda
a generosidade com que escreveram estes textos?
Brincam com as palavras como um dia eu gostaria
de saber brincar com as imagens.

Muito obrigado José Marto
por este teu texto fantástico.

2 comentários:

Nenúfar Cor-de-Rosa disse...

Fantástico! Gostei imenso!! Eu bem digo que dava um livro (parabéns)...agora, eu penso que o João já brinca com as imagens! E muitíssimo bem:-). Prova disso, são os textos que elas dão origem, a brincar a brincar uma imagem valeu por mil (ou mais!) palavras. Bjs.

deep disse...

Muito bonito, José Marto. Parabéns!

Não ensaiamos todos, todos os dias, acrobacias nas esferas? Por vezes, faltam-nos o mar e o barco que nos leve os sonhos até à ilha. :)

João, proporcionares esta partilha é a tua forma antecipada de agradeceres. Então não sabes brincar com as imagens? Se sabes! :)

Boa semana. Um abraço :)