sexta-feira, 27 de julho de 2007

Decantar a vida


Por aqueles dias sentia-se cansada, não que o trabalho a torturasse muito ou as crianças se impusessem mais do que o habitual, mas sentia um cansaço ancestral, sem origem nem destino. Amando a vida sentia um inexplicável cansaço de existir. O mar, a praia eram por vezes um escape. Mas, ultimamente essa longínqua linha do horizonte, na praia, não chegava para o seu desejo de evasão. Condensava as ideias, acumulava-as até ao dia em que sabia certa a implosão. Imaginava-se numa vida sem grandes raízes e mais como uma árvore que ergue os ramos para o céu. Como um cipreste. Gostava da elegância dos ciprestes apesar da negativa conotação que muitos lhes atribuíam.

Tinha iniciado há algum tempo aquilo a que chamava “um trabalho de decantação da vida”. Os amigos riram-se quando lhes contou da tarefa empreendida. “Decantação da vida?" "Sim, senhores, um exercício doloroso mas inevitável e indispensável. Como um viajante que para seguir viagem tem de se despojar de tudo o que está a mais, de tudo o que pesa na bagagem. Reduzir a vida ao essencial, era isso decantar a vida.”

Sabia que às vezes até os afectos podiam fazer transtorno a quem empreendia tal viagem. Lembrava-se dos versos de Pessoa “o mesmo amor que tenham por nós quer-nos e oprime-nos”. Libertar-se então dos afectos. E depois? Que “alimento” teria? Com que ombros contaria? Que vozes a alentariam? Que olhares lhe devolveriam a sua imagem? Não podia fazer tal caminho sem regressar sempre que precisasse. Precisava muito de portos de chegada. Mas, e os outros, como faria com os outros? Os que tinham aprendido a confiar-se-lhe, os que precisavam dela para existir? Não, a decantação não podia passar por aí. Apetecia-lhe um período de retiro, de introspecção e renascimento de si. Imaginava os que entravam em mosteiros e faziam temporários votos de silêncio, meditação, reflexão, vidas simples, desornamentadas.

Sabia de que pais tinha nascido, em que terra tinha nascido, hora, dia e ano, mas o sentido da vida exigia mais do que simples informações grafadas numa certidão de nascimento. Que caminho e que projecto teria então para levar a cabo.

Às vezes era o desnorte. Não se reconhecia. Sempre tinha racionalizado tudo, etapa por etapa, sem ondas nem sobressaltos. Na aparência dura e racional, era todo um trabalho que lhe roubava energias, para conseguir proteger a sua verdadeira pele. Camadas e camadas de máscaras e aparências ditadas pelas circunstâncias escondiam a sua essência. Já nem sabia onde, nem como procurá-la. Pensava-se como uma duna no deserto, fustigada pelo vento. Aparentemente punha a descoberto a camada seguinte, mas havia sempre outra e outra. Era uma busca de si dolorosa e demorada e nem sempre gostava do que encontrava. Alheava-se do que a rodeava, deixava que o pensamento voasse para longe dali e sentia-se sempre estranha mesmo entre iguais. Sentia-se sempre a mais, deslocada, inconfessadamente perdida.

Talvez a decantação exigisse várias fases, muita paciência, muita atenção. Uma vida inteira. Rasgando-se por dentro continuava teimosamente a marcar encontro consigo própria perguntando-se se o mesmo aconteceria aos outros.

3 comentários:

CNS disse...

Mas li. A questão é que não consigo dizer nada mais elaborado do que um sincero gostei muito. O comentário é fraquito, eu sei... Ah, e não li. Reli.

Cristina Gomes da Silva disse...

Obrigada Cristina, às vezes não é preciso dizer nada, só sentir. Volta sempre

Anónimo disse...

OI, achei muito interessante, não sei pq as pessoas não leêm. Ma~s não sabem o que estão perdendo. Achei uma lição de vida. Simplesmente não há palvras para descrever...tchau. Thallita Fernanda, Campina Grande, PB.