domingo, 29 de julho de 2007

Ainda os livros*

"Agora as minhas letras descansam dentro de mim, mas vou lendo as tuas e o modo como às vezes elas dizem mais de ti do que tudo o resto...é assim a escrita." Disse a CC no comentário ao post Ler. E eu digo-lhe em jeito de correspondência epistolar:

"Cara CC,

Não sei se estou de acordo contigo (mas também já não é novidade). A escrita tem o seu lugar, a sua função, mas também tem, para mim, alguns limites: os limites da comunicação. Não há nunca um face a face entre quem escreve e quem lê, no mesmo acto de comunicar, tudo é sempre em diferido. Como sabes, apesar de o fazer, incomoda-me o processo virtual em que escrevemos. Prefiro incomparavelmente o calor de uma boa discussão e o som das vozes à frieza desta escrita/leitura à distância. Olhar-te nos olhos é diferente de escrever para que me leias, não sei onde nem quando. É este desconforto que nomeio de cada vez que nos interrogo por aqui. Acho-a incompleta, esta relação inodora e sem contornos que por aqui vamos estabelecendo, compreendes-me? E, olha, o que descobri ontem, apesar de já ter sido escrito há algum tempo – George Steiner, O Silêncio dos livros, Gradiva, 2007:

A escrita constitui um arquipélago na imensidade oceânica da oralidade humana. (…) Milhares de anos antes do processo de desenvolvimento das formas escritas já se contavam histórias, já se transmitiam por via oral ensinamentos de carácter religioso e mágico, já se compunham e transmitiam fórmulas encantatórias de amor, ou então anátemas”. p.8

E, mais adiante, sobre a música: “Não existe neste planeta um único ser humano que não mantenha com a música um qualquer tipo de relação. A música, sob a forma do canto ou da execução instrumental, parece ser de facto universal. É a linguagem fundamental para comunicar sentimentos e significações. A maior parte das pessoas não lê livros. Porém, canta e dança” p.9

E, depois sobre as origens “(…) a nossa herança intelectual e ética, bem como a leitura que fazemos da nossa identidade e da morte, vêm-nos directamente de Sócrates e de Jesus de Nazaré. Nenhum deles, contudo, fez questão de ser autor e muito menos de ser publicado” p. 9

Repara que ele fala de herança intelectual e ética, mas, e as outras, as dos sentidos, as dos sentires?

Atenta bem agora, "(…) Sócrates não escreveu nem ditou. São profundos os motivos que explicam esta questão. O confronto olhos nos olhos e a comunicação oral em espaços públicos são razões essenciais. (…) Em Sócrates, o pensamento, mesmo o mais abstracto, e a alegoria, mesmo a mais impenetrável, supõem a experiência vivida, irredutível a toda e qualquer textualidade muda.” pp. 9-11

Que fique claro que não advogo qualquer retorno às origens, serei eternamente dependente da escrita e…dos livros, mas prefiro de longe a (con)versa, as vozes nas conversas, os olhares e os corpos.

E para acabar por hoje, porque está muito calor e os sentidos andam à solta, não quero correr o risco porque “O escrito apodera-se dos sentidos” p.14

Abraços cheios de calor,
C."

*Escrito ao som de Miles Davis.

4 comentários:

João Torres disse...

Também prefiro as conversas...

Cristina... O Sócrates é o outro, não é? Frases como "Sócrates não escreveu nem ditou...", tiradas do contexto, podem ser perigosas... mesmo que sejam escritas blogue que ninguém lé!

j disse...

Assim de repente, não estou a ver melhor banda sonora :)

CCF disse...

Os limites à comunicação também existem quando estamos olhos nos olhos, estão além e para lá do escrito. :) De resto acredito pouco em universais porque nem todos cantamos e dançamos, alguns preferem escrever a cantar ou dançar.Também gosto de conversar mas ás vezes fico melhor escondida num canto e prefiro escrever. Beijinhos, também às meninas.

Cristina Gomes da Silva disse...

João: não te preocupes que o Sócrates luso nem sabe do que se trata...

Jota: em completa sintonia

CCF: não te zangues, moça. Todos nós precisamos de entrar na toca de vez em quando. Cá estaremos à tua espera. Bêjos