terça-feira, 1 de maio de 2007

(Primeiro de) Maio

Há coisas que contamos ter pela vida dentro, mesmo que tenham cor negra. Um pouco de desilusão, laivos de desamor, um provável desencontro. Outras há que achamos nunca vão morar lado a lado connosco. Falo da doença, da droga, do desemprego, da morte, essas são coisas dos outros. Olhamos para elas com a distância de quem as vê nas páginas de um jornal.

Quando menos esperamos, porém, uma coisa destas acontece-nos, a nós ou a alguém que amamos tanto ou mais que a nós mesmos. Percebemos então que uma outra atenção a estes problemas nos teria sido essencial porque são as coisas do mundo, de todo o mundo que é nosso. Talvez uma outra atenção faça falta, não me perguntem exactamente como, cada um o encontrará ou o encontraremos juntos.

Nenhum manual nos serve para encarar o precipício, penso que apenas toda a quantidade de calor que conseguimos guardar nos desembrulha os dias e nos lança na esperança. E eu, como nasci e passei a infância em África, não tenho de meu quase nada, mas guardei muito sol. Talvez por isso faço um exercício de regresso ao passado em vez de me demorar mais e mais na incerteza do futuro neste dia primeiro. Esse regresso faz-me sorrir e esse movimento dos lábios é quase é uma carícia.

Recordo os meus primeiros empregos, dois Verões-um com quinze anos e outro com dezasseis.

O primeiro dividiu-se em dois e ambos combinados com a palavra Algarve-era o tempo da chegada do Turismo de massas. Fardadinha de branco e preto tentava servir os ingleses numa esplanada junto ao mar, pensando sempre na hora do mergulho, no sal , na vertigem da espuma. O resultado não foi bom, ganhou o mar. Depois, um pequeno quiosque serviu-me a mim e a outra amiga de porto de autonomia total. O proprietário tinha o quiosque fechado e deu-nos a chave, a liberdade da criação da ementa e 10% sobre os lucros. Ainda hoje penso como é que se entrega um negócio assim a duas miúdas, uma de 15 e outra de 19 anos...mas confesso que foi dos melhores empregos da minha vida: criação, lucro e banhos de mar à vez.

No Verão seguinte inscrevi-me num programa do Ministério do trabalho, denominado como OTL que hoje, reformulado, deve ter sigla parecida. Colocaram-me numa autarquia entre o rural e o urbano, periférica da cidade de Lisboa (hoje da área metropolitana). No primeiro dia também ganhei uma chave. Era a chave de um parque infantil da pequena cidade; meia dúzia de baloiços, dois escorregas e uns cavalinhos desbotados, plantados em areia da praia e cercados de rede. Competia-me a mim guardá-lo nas férias da empregada oficial. A única lição que me foi dada tinha a ver com um estranho objecto de alisar a areia ao final do dia, livrando-a de folhas e outros elementos impróprios. Porta fechada, poucas falas e areia lisa -foram as recomendações. O primeiro dia foi de observação, no segundo já levei as canetas de feltro e as folhas de papel e no terceiro a bola e...a areia sempre lisa!

É bom trabalhar.
~CC~

8 comentários:

Capitão-Mor disse...

Parque infantil na periferia de Lisboa? Será o mítico parque do Sobral Monte de Agraço imortalizado pelo comercial do Tide com o Vítor de Sousa? :)
Gostei muito do blogue. Foi sugerido pela Marta...

António Conceição disse...

Também eu chego aqui via Marta, do Claras em Castelo.
Gostei da escrita. Acho que vou estar em sistemático desacordo com as ideias. Por isso, vou começar a passar mais vezes.

João Torres disse...

É bom trabalhar e, perto de ti, é também um privilégio.

Gregorio Salvaterra disse...

É bom visitar memórias e abraçar maio do trabalho e dos maios do sul

j disse...

Também gostei deste elogio ao trabalho. A gestão do quiosque deve ter sido uma animação, calculo ;-) Acho que faz bem à malta nova ter uma experiência de trabalho na adolescência, como ocupação de (pelo menos parte)férias. Eu devia ter uns 15 quando andei a vender livros de porta a porta.. Não ganhei quase nada porque era péssimo vendedor (a verdade é que não acreditava na qualidade do produto e tinha dificuldade em mentir :)No entanto, foi uma experiência muito rica, quanto ao desvendar da natureza humana - apanhava gente de todos os feitios! Um abraço.

Anónimo disse...

Há muitos anos que faço o elogio do trabalho, apesar de também fazer o elogio da preguiça, por a achar, também, fundamental

CCF disse...

Venha quem vier por bem, trazido por uma mão amiga tanto melhor, com concordância ou sem ela. O parque, capitão, não é esse não, mas na altura todos tinham um pouco essas características. A alternância tão segmentada de tempos de trabalho e de lazer é coisa da revolução industrial, parece-me que antes tudo estava mais misturado. Marta, a desvalorização do ócio no sentido grego é uma pena, nomeadamente porque ele significava também tempo para a participação na vida da cidade e para beber a vida e pensar sobre ela. Mas sabemos quanto é importante hoje trabalhar,até pela inclusão social que isso também proporciona(e tu sabes, li em silêncio a tua tristeza recente mas li...)
J, talvez vender livros já fosse um prenúncio do amor às palavras?! Pareces viver tão bem com elas...
João, é muito bonito o que dizes e retribuo igual carinho e admiração.
Gregório, Maio a começar a sul teve muito encanto, já Maios do Sul são ainda outra coisa, talvez nos pudesses trazer mais sobre isso aqui ou na tua casa, sei pouco mas interessa-me. Abraços
~CC~

Anónimo disse...

Bons hábitos...;)